No dia 24 de abril, Bolsonaro se pronunciou em rede nacional sobre a saída do ministro mais popular do seu governo. No centro de seu discurso, aparece o nome da vereadora Marielle Franco. Para o Presidente, a investigação da facada que recebeu na campanha eleitoral é mais importante do que aquela referente ao brutal crime político realizado contra Marielle e que também vitimou o motorista Anderson. Enganam-se os que pensam que Bolsonaro citou Marielle de forma ocasional e despropositada.
Expresso em sua fala ultraconservadora, há uma hierarquia explícita entre vidas que valem mais e que valem menos. Nessa visão, uma vereadora negra, LGBT, militante de esquerda, socialista, que falava sobre os problemas da favela e enfrentava as milícias, para o presidente obviamente vale menos, assim como valem menos as vidas daqueles que estão morrendo – e irão morrer aos milhares – em decorrência do coronavírus.
É importante se dizer que a maioria das mortes pela pandemia tem endereço certo, e o chefe do Estado brasileiro sabe disso! Estudos demonstram que, embora as pessoas brancas contaminem-se mais, morrem menos. Por outro lado, a letalidade é maior entre negras e negros, como afirmou Denize Ornelas, diretora da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade.
As mortes da população negra não são por acaso, assim como não são os discursos de Bolsonaro. Sabe-se que negros e negras possuem os piores salários e são maioria entre os trabalhadores informais, como quem trabalha para plataformas e não tem um mínimo de dignidade e direitos garantidos. Esses trabalhadores e trabalhadoras não estão tendo efetivamente o direito à quarentena e sequer ao uso de EPIs (equipamentos de proteção individual).
Negros e negras representam 67% dos brasileiros que dependem exclusivamente do SUS, sendo tudo isso reflexo de uma sociedade de passado escravocrata e do racismo que segue atual. A segregação imposta às pessoas negras no Brasil é anterior à pandemia e as coloca em uma situação de forte risco. Não se pode esquecer que nas favelas brasileiras vivem, de forma aglomerada, onze milhões de pessoas, sem saneamento básico e em situação de pobreza.
É nessa realidade tenebrosa de vidas descartáveis que a manipulação da informação pelo clã Bolsonaro se reapresenta, não de forma isolada, mas como mais um episódio dessa tática que é central de sua política. De forma proposital, consciente e articulada, a Presidência da República promove incoerência e confusão na mensagem transmitida pelo Estado brasileiro à população acerca do coronavírus, sem qualquer respaldo científico. O Estado, então, minimiza a gravidade do risco de morte e incita exposição desnecessária e desigual de trabalhadores e trabalhadoras à contaminação.
Coronavírus e necropolítica se encontram para “deixar morrer”, entre muitas aspas, uma maioria pobre, uma maioria negra. Como resultado, as milhares de mortes já foram noticiadas à Presidência da República pelo órgão de inteligência do governo (ABIN), conforme denunciou o site The Intercept em 24 de março. Nesse contexto, Bolsonaro utiliza uma estrutura organizada de propagação de desinformação, que usa meios oficiais e não oficiais de difusão de informação, ora pela sua influência como chefe de Estado, ora pela articulação do bloco bolsonarista e de fake news nas redes sociais.
Em resposta ao resultado genocida e discriminatório da manipulação de informação durante a pandemia, no dia 17 de abril de 2020 foi protocolada denúncia contra o Estado brasileiro à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, organismo vinculado à Organização dos Estados Americanos (OEA).
A denúncia foi assinada por dezenas de figuras públicas, parlamentares, juízes, advogados, promotores, professores de Direito e entidades, dentre as quais, além das autoras desse artigo, a Associação dos Juízes para a Democracia (AJD), os Coletivos Transforma Ministério Público e Intervozes, as organizações Terra de Direitos e Justiça Global, assim como toda a bancada de parlamentares federal do PSOL e deputados estaduais como Renato Roseno (Ceará) e Érika Hilton (São Paulo), a vereadora Mariana Conti (Campinas-SP), o Líder do MTST Guilherme Boulos e a liderança indígena Sônia Guajajara.
São incontáveis os eventos que explicitam os atos do Estado brasileiro que devem ser repudiados, podendo-se citar as oportunidades em que o Presidente chamou a crise de “muito mais fantasia”, a Covid-19 de “gripezinha” ou quando compareceu a manifestações, ato que foi seguido da criação da campanha #OBrasilNãoPodeParar, que defendia a flexibilização do isolamento social. Isso sem falar nas entrevistas e publicações nas redes sociais, dentre elas aquelas que incentivaram o uso de medicação sem respaldo científico.
Pela conduta sem freios do Presidente, instaura-se uma guerra pela verdade que mostra como a separação de poderes, prescrita pela Constituição Federal, encontra-se atacada e inefetiva. Os Poderes Judiciário e o Legislativo, mesmo quando agem, não conseguem barrar a máquina de desinformação. A denúncia parte do princípio de que está configurada a ineficiência das estruturas do Estado Brasileiro no combate à política do “deixa morrer” bolsonarista. Todos os caminhos de denúncia devem ser viabilizados e construídos pelo campo crítico e democrático do país, em frente única, como essa medida internacional à OEA.
Pede-se que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos emita recomendação, em medida cautelar (urgente), para que o Brasil impeça qualquer conduta que promova a incitação à exposição desnecessária ou que traga informações equivocadas sobre a pandemia e a saúde coletiva, bem como para que o Estado promova ações para informar de forma transparente e com embasamento científico à totalidade dos brasileiros e brasileiras, por meios efetivos.
Ainda, tem-se a expectativa de que o sistema interamericano crie uma Relatoria Especial temática para tratar de violações a direitos humanos no contexto da pandemia de Covid-19 em toda a América Latina, o que permitiria uma atuação mais integrada com outros povos do continente, que também estão sofrendo não somente pelo vírus, mas pelas políticas de seus governantes.
Esperamos que a Comissão Interamericana atue rápido e de forma eficiente. Contudo, sabemos que a crise é muito mais grave e de raízes históricas. As mazelas se escancararam durante a pandemia, mas já eram sentidas todos os dias pela classe trabalhadora, pelo povo negro e por quem mora nas periferias.
Não foi só a partir do coronavírus que a água começou a faltar nos bairros pobres das cidades, nem com a pandemia que o número de trabalhadores precários se agigantou. Não foi com o primeiro caso de contaminação no Brasil que o SUS se mostra insuficiente com perda progressiva de verbas. Discutir a crise atual é importantíssimo, diálogo que deve estar conectado com a discussão da crise estrutural do Estado brasileiro, assim como das instituições da República, que revelam sua ineficiência diante do crescimento da barbárie. Já passou da hora das forças de esquerda voltarem a pegar a política “pelas raízes”.
Começamos este texto afirmando que, para Bolsonaro, a vida de Marielle vale menos do que a dele, assim como valem pouco as daqueles que estão morrendo em decorrência da covid-19. Não aceitamos essas afirmações e nos somamos ao grupo de mais de cem juristas, políticos e organizações da sociedade civil que denunciaram o Estado brasileiro à OEA. A denúncia dá corpo e se articula à indignação de outras palavras de ordem e de luta, como o fora Bolsonaro e a necessidade de combater a desinformação para defender a vida. Eles têm que nos respeitar!
Texto por:
Karen Moraes dos Santos, vereadora do PSOL/Alicerce em Porto Alegre.
Bruna Fernandes Marcondes, advogada.
Lawrence Estivalet de Mello, doutor em Direito pela UFPR, professor da Universidade Positivo (Curitiba/PR).
Ronaldo F. Lacerda Pinto, assessor jurídico parlamentar.
Denúncia completa disponível em: https://www.ajd.org.br/noticias/2591-ajd-e-entidades-da-sociedade-civil-apoiam-denuncia-contra-estado-brasileiro-a-comissao-interamericana-de-direitos-humano