Artigo construído pelo Defensor Público Andrey Melo e Vereadora Karen Santos primeiramente publicado no Correio do Povo e Ijuí News!
“Tudo é um mar sereno em mim”, disse, em voz trêmula, a mãe negra.
Ela sabia que o ventre era tão diferente do desconhecido mundo de desiguais matizes. As águas não eram aquelas singradas pelos tumbeiros com milhões de corpos negros apartados para sempre de suas famílias.
O menino está quietinho na barriga. Recebe afetos ancestrais. Não se importa com o balouçar das águas mornas, não sabe dos açoites que torturavam negros para a produção de riquezas no território colonial.
A mãe, angustiada com os desafios do tornar-se negro, recorda-se da suspeição generalizada que alicerçou o controle social brasileiro a partir do Séc. XIX. Desde então, a fundada suspeita é representada no imaginário coletivo pelo negro distante da unidade produtiva escravocrata.
“Quanto nos devem pelos séculos de trabalho não remunerado? Talvez o país inteiro”, delibera a mãe. Depois, quando arrebentaram os grilhões da escravidão, aprisionaram a população negra nas periferias: sem educação, saúde, terra e trabalho.
O olhos noturnos, brilhantes, apavorados, buscam no espelho a compreensão para o perfilamento racial nas abordagens policiais. Como explicar ao menino as fronteiras internas racialmente construídas?
Racismos?
As violências e as dores são plurais diante das práticas e discursos que buscam subalternizar o negro. O menino saberá um dia que a democracia racial relegou aos negros a condição de explorado, sem acesso aos espaços de poder.
“A desconstrução da classe trabalhadora negra ainda está nos porões da história”, pondera a mãe.
“Mamãe, por que ela tá chorando na televisão?”
O pranto materno é um protesto pela “bala perdida” do Estado que outra vez perfurou a inocente pele preta.
“Ele está seguro no meu ventre. Maldito contrato”, pensa a negra.
Cárcere, homicídios e letalidade policial em desfavor dos jovens negros são cláusulas vigentes no contrato racial brasileiro.
As políticas afirmativas descortinaram um novo horizonte, insuficientes, porém, para superar os séculos de desumanização e pauperização. O Brasil precisa de um novo pacto moral, político e econômico à equidade racial.
“O meu menino não vai assinar”, refletiu a mãe, no Dia da Consciência Negra.